domingo, 30 de janeiro de 2011

Abismo




Vertigem – W. G. Sebald


Mais um livro do Sebald. Estou cada vez mais apaixonado por ele. È uma pena que sua obra seja tão pequena (assim como o Bolaño, ele morreu precocemente, no começo dos anos 2000).

O Vertigem, que é anterior ao Austerlitz, tem questões centrais que se assemelham bastante com as deste. Memória, história da Europa, um personagem bastante opaco percorrendo o continente em viagens melancólicas a bordo de trens.

Uma diferença fundamental (e uma tanto aleatória, eu sei, mas é tentando iluminar as coisas pelo contraste) entre o tipo de viagem que rola nos livros do Sebald e as do Pé na Estrada (sim, eu curto esse título em português), por exemplo, é que, no Kerouac, a viagem é sempre uma descoberta não só de si, mas da própria geografia, um nomadismo*, a criação de novos territórios naqueles já existentes (redes de afeto, de camaradagem). No Sebald, os locais estão saturados pelo passado. Por onde o narrador passa, seja na Itália ou em Viena, algum outro escritor (canônico, famoso) já passou antes e deixou suas marcas na História. Não há como fugir, a memória está em todos os lugares, inclusive nas paisagens, tão ricamente descritas pelo escritor.

A última parada da viagem do narrador é a aldeia germânica onde o personagem nasceu. Ali ele relembra a infância, e a memória tem, obviamente, outra conotação. Mais pessoal e menos coletiva (ainda que, etc etc). Ele diz, quando conversa com um conterrâneo que conhece desde criança:

Concordou sobretudo quando eu disse que, ao longo do tempo, eu dera muitos tratos à imaginação, mas que assim as coisas, em vez de ficarem mais claras, ficaram mais enigmáticas. Quanto mais imagens coleciono do passado, eu disse, mais impossível me parece que o passado tenha de fato ocorrido dessa maneira, pois nada nele poderia ser chamado normal: a maior parte dele era ridícula e, quando não ridícula, aterradora” (p. 162)

As imagens, o autor coleciona do passado e evoca melancolicamente tanto com as palavras quanto com as fotografias e os desenhos em preto e branco que se espalham e se encaixam entre o texto, falsos espelhos da palavra escrita, também fontes do mistério que cerca toda a narrativa. Falsos espelhos como, de resto, são as nossas lembranças, vestígios do que passou que o Sebald tenta de alguma forma organizar, apreender, deixando buracos por todos os lados, abismos que encaramos com a vertigem do presente.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Pequeno comentário sobre Síndrome de Bartebly, de Enrique Vila-Matas.


Às vezes me parece mesmo que a literatura chegou nesse beco sem saída, ou pelo menos está dobrando a esquina, prestes a.

Para me explicar: quando eu gosto muito de um livro como o Fup (por exemplo) é porque ele é tão cheio de vida, aos borbotões.

O Síndrome de Bartebly, pelo contrário, está obviamente morto desde o início. E é esse mesmo o seu propósito – falar sobre a morte, sobre o impulso negativo que impede a escrita de fluir, as motivações filosóficas e práticas desse óbito (só decretado é claro àqueles que um dia pretenderam criar vida a partir de suas mãos), o fascínio pelo nada, o silêncio percorrendo as gerações.
Ainda que eu me identifique e que toda escrita tenha seu quinhão de silêncio intrínseco e necessário e que essa agonia e essa tendência sempre pareçam perto de seu triunfo definitivo sobre nossas tentativas e são no final das contas seu próprio impulso, e que eu entenda que esse seja um assunto tão importante quanto qualquer outro (e, se falamos no limite do nada, tão desimportante quanto qualquer outro), livros que sejam sobre tentar viver, o que também significa enfrentar constantemente a morte, me interessam mais.

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É incrível mesmo, e sempre acontece: eu penso numa certa perspectiva sobre um livro, elogiando ou criticando-o, e enquanto escrevo sobre ele começo a fazer o oposto do que eu pretendia.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Incapacidades


Então eu estava lendo o Austerlitz.

Livro do W. G. Sebald, um escritor alemão aí, contemporâneo apesar de já morto.

E terminei de ler e tudo, achei bonitão, triste e muito muito bem escrito. Mas empaquei na hora de escrever sobre ele aqui pro blog.

Acho que o motivo é que eu não tenho muita aptidão (ou vontade) de falar sobre Grandes Temas, e o livro é bem cheio deles. No final das contas ele é sobre a história da Europa pós Segunda Guerra. E também um romance sobre o Holocausto. Sobre a incapacidade de lidar com o Holocausto. Sobre memória e esquecimento. Sobre como um acontecimento tão estapafúrdio reverbera e muda a forma de alguém (de um país? de um povo?) encarar a própria vida. O que me lembrou bastante o que o Deleuze diz que é o ponto de ruptura entre o cinema clássico e o moderno: depois do Holocausto e da utilização das imagens pelo Terceiro Reich, como encarar o cinema dali pra frente? O que, na prática, resulta em personagens perdidos e até em imagens desencontradas (falsos raccords, etc). No livro, o protagonista, Jacques Auterlitz, conta sua história para um professor universitário, e tudo se volta no fim das contas para uma parte do seu passado do qual não se lembra e que tem nesse momento da história um ponto nevrálgico – um esquecimento que afeta tudo dali pra frente, o incapacitando de viver normalmente. '

É tudo muito interessante, e o livro é lindo, cheio de imagens meio enigmáticas (nem sempre totalmente ilustrativas; como, aliás, no melhor cinema) e de um texto em alguns momentos quase híbrido entre a ficção e o ensaio. Mas na hora de produzir um discurso sobre ele, o assunto escapa e eu só consigo pensar no que já foi dito (e que não é tudo, eu sei, eu sei, mas mesmo assim).

De qualquer forma fica aí minha tentativa de manejar minhas impossibilidades.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

de como a crítica é sempre mais sobre o crítico que sobre o livro

É mesmo muito sintomático que num livro carregado de tintas metafísicas como o Ubik, eu tenha me concentrado na parte mais material da história.

domingo, 11 de abril de 2010

Anotações sobre Ubik




* É bom confessar que eu sempre fui um pouco nerd. Gosto de quadrinhos até hoje (e não só os alternativos, mas os da Marvel mesmo, X-Men e tal), li todos os Harry Potter e Senhor dos Anéis, e curto seriados como Buffy, Firefly e Caprica. Também amo muitos filmes de ficção científica: Stalker, vários do Cronenberg, Shyamalan, e etc. Mas dentro desse gênero, a verdade é que li muitos poucos livros. Só uma incursão fracassada no Fundação, trilogia do Isaac Asimov, e a leitura do belíssimo Crônicas Marcianas, do Bradbury (do qual quero muito ler mais livros). Também li um meio pulp, talvez o nome seja Vampiros de Almas, não me lembro muito bem, que, como se vê, não me marcou especialmente, exceto por uma passagem que lembro até hoje: uma espaçonave enorme, gigantesca mesmo, completamente vazia, vagando eternamente pelo espaço.

* O que eu gosto mais nessas narrativas de ficção é como projetamos nelas, se passando em tempos futuros, as questões do nosso presente. Eu sei que é bem óbvio isso: uma ficção científica sempre está dizendo algo sobre o nosso tempo – não é um exercício de futurologia, de previsão do futuro. A ficção científica não é mediunidade. É uma maneira, talvez, de, situando as histórias no futuro, ou no espaço, ou em outra civilização mais avançada, etc., saturar as questões latentes no nosso presente até um ponto crítico. Uma reflexão sobre exatamente os nossos dias, portanto.

* Dito tudo isto o livro que eu acabei de ler é uma ficção: Ubik, meu primeiro do Philip K. Dick. Ele se passa em 1992, mas foi escrito quando esse era ainda um ano por vir, em 69. No universo de Ubik, as pessoas não morrem realmente (se tiverem dinheiro o bastante, pelo menos), mas são mantidas num estado de meia-vida em que podem se comunicar com os vivos. Nesse futuro existem pessoas com poderes psíquicos de ler mentes e de prever o futuro. O personagem principal de Ubik, Joe Chip, trabalha numa das firmas que fornecem proteção contra essas pessoas para empresas. Na trama, Joe reúne seus melhores funcionários para um trabalho na Lua. Quando chega lá, sofre um atentado, seu chefe morre, e a partir daí seus subordinados começam a morrer um a um, de forma assustadora, como seus corpos tivessem se esgotado completamente e se tornam trapos, se decompõem e terminam quase como cinzas. Joe tem que, então, desvendar o mistério e lutar pela própria sobrevivência.

* Uma das coisas marcantes do livro e que fala muito sobre as preocupações do autor, é a monetarização absoluta de todos os mínimos movimentos cotidianos dessa versão de 92. Ali as portas só abrem se você depositar moedas, assim como as cafeteiras dentro da sua casa só fazem café mediante dinheiro, o seu chuveiro só abre nesse esquema, e etc. Não é a toa que nosso protagonista, Joe Chip, seja alguém que não tem nenhuma habilidade em lidar com dinheiro, e portanto seja sempre um pária nesse universo. Quando as coisas começam a ficar muito estranhas para Chip conforme a trama avança, as primeiras coisas que denotam seu problema são as moedas, que de repente ficam obsoletas. E até o tal Ubik, que nomeia o livro, e que é o que pode salvar Joe, é um produto, algo que se compra.

* É incrível como Ubik consegue juntar quase todos os sub-gêneros possíveis de ficção cientifica: viagens interplanetárias, poderes psíquicos, viagem no tempo e realidades alternativas (num esquema meio Matrix) e fazer super sentido. Além de ter cliffhangers nos finais de capítulos muito melhores que os de qualquer Lost.

* Talvez, o que no final das contas seja perigosamente ubíquo para K. Dick são as relações mediadas pelo dinheiro, algo que nese livro não acaba mesmo depois que você morre.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Enrolation

Pro blog não morrer à mingua antes de sequer começar direito, vou postar uma poesia da Ana C. aqui.
Algo como o modo picareta de administrar blogs.
;)

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Estou sirgando, mas
o velame foge.
Te digo, não chores não.
Aqui é mais calmo, suave ardor
         que se pode namorar à distância
Não é teu corpo.
É a possibilidade da sombra.
Que se recorta e recobre.
Eles se desencaminham,
mas não se pode fazer por menos.
Querida, lembra nossas soluções?
Nossas bandeiras levantadas?
O verão?
O recorte dos ritmos, intactos?
É para você que escrevo, é para
                                                 você.

      "My life closed twice before its close"
           Emily Dickson

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Esse verso: "o recorte dos ritmos, intactos?" é um dos meus preferidos da Ana, e da poesia brasileira em geral.
O poema é do Inéditos e Dispersos. O A teus pés, seu outro livro, é um dos meus preferidos de todos os tempos, com o perdão da hipérbole superutilizada.
Uma vez, numa brincaeira de Fahrenheit 451 com umas amigas, meio que escolhi ser o A teus pés, porque de uma sensação parecida com essa que descrevi sobre o Bolaño: parece ser um livro que eu nunca vou entender por completo.
E acho que nem deve ser entendido: a literatura da Ana Cristina parte claramente desse jogo.
Daí, se eu precisasse decorar um livro para ser a vida toda, eu acho que gostaria de um que sempre me surpreendesse. E, claro, que fosse bom pra caralho.

segunda-feira, 22 de março de 2010

crime em sonora



Para o primeiro post não introdutório deste (malfadado) blog, resolvi falar do Roberto Bolaño, última de minhas obsessões literárias. Acho que o único autor que eu acompanho fielmente todo o processo de publicação no Brasil; comprei quase todos (menos o primeiro publicado aqui) assim que saíram. E acho, sinceramente, que ele é o melhor escritor contemporâneo que eu já li – melhor que McEwan, Coetzee, Zadie Smith e etc.

Dessa vez, particularmente, não falarei de um livro específico. Mas de algumas impressões que o conjunto de livros que eu li me trouxe. E, como eu disse no primeiro post, tudo sem compromisso e pá pá pá.

O Bolaño tem um universo bem particular, que se confunde bastante com a história de vida dele. Grande parte dos seus livros envolve jovens na América Latina, ou jovens latino-americanos na Europa, ou ambas as coisas, envolvidos com literatura e com política. Muito do seu trabalho é claramente a tentativa de retratar essa geração de latino-americanos que teve sua vida atropelada pelas ditaduras que assolaram seus países.

Mas o que pega mesmo (sempre, é claro) é o jeito dele escrever essa geração. O Bolaño faz milhões de referencias a outros autores nos seus livros (assim como seus personagens, ele era muito apaixonado por literatura), e muitos deles são escritores de romances policiais. Essa verve policial também acompanha o Bolaño – muitas de suas tramas envolvem um mistério, desde seu primeiro romance, A pista de gelo, passando pelo meu favorito (até agora), Os detetives selvagens. Não que eles se encaixem no formato clássico do gênero. Não é uma questão de solucionar mistérios. Me parece mais que os mistérios estão em todo canto da sua narrativa, é o que a move.

A própria linguagem do autor, rápida, precisa, redonda, parece sempre deixar algo pra trás. Eu sempre acho que perdi alguma coisa na leitura, e volto inúmeras vezes, releio os parágrafos, pra sempre descobrir que não há nada de novo escrito ali. É o tal mistério. Que faz com que nunca conheçamos de fato os personagens. Que faz com que a sua geração nunca possa ser precisamente retratada. Talvez por que haja muitos absurdos na história dessa geração. Talvez por que o problema seja sempre exatamente esse: o que foge do nosso retrato. E a escrita do Bolaño assume isso. Em vez de se desesperar, joga com esse mistério o tempo todo. Sabe do fracasso iminente do seu projeto.

Sabe tanto porque até o projeto da sua geração falhou.

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Isso são só algumas observações soltas. Não dão conta de quase nada dentro da obra do Bolaño. São as coisas que me tocam mais no que eu li dele até agora. Infelizmente, muito infelizmente, ele morreu em 2003. Mas no Brasil sua obra continua sendo publicada. A Cia das Letras prometeu o romance 2666 pra maio. Aí eu volto pra falar mais.

p.s.: olha, eu pretendia ainda fazer um post bem menor que esse. mas vamos treinando com o tempo.